The Last of Us Part II: um novo Joel? — uma retrospectiva
por Lucas Serniker 30/07/2020 | @oserniker
The Last of Us Part II é singular. Sem dúvida, uma sequência digna para o primeiro game, ainda que muito dolorosa — mas, nessa vida, o que não é?
O texto contém spoilers e é destinado para players que já concluíram a jornada.
Introdução
O primeiro The Last of Us (2013) nos convida a percorrer uma jornada que tem início com a eclosão de um surto fúngico — denominado cordyceps — nos EUA. De início, conhecemos os personagens Joel e Sarah Miller (pai e filha), que viviam em Austin, no Texas.
No dia da eclosão, em meio ao caos — infectados que atacam com canibalismo, tumulto, violência — e a tentativa de Joel de salvar a família, Sarah é assassinada por um soldado do governo que cumpria ordens de contenção da população no perímetro da cidade.
Com a morte da filha, Joel vê seu mundo desmoronar. Embora haja um salto temporal na história, a cena final do prólogo nos mostra que, com exceção da instintiva luta por sobrevivência, a vida perde significado para o protagonista. Nesse sentido, a música ‘All Gone (Aftermath)’, de Gustavo Santaolalla, consegue expressar perfeitamente o sentimento de perda repentina que o atinge, em uma das cenas mais impactantes já produzidas.
Com Sarah em seus braços, Joel chora em meio a uma fala angustiante:
“Eu sei, querida. Eu sei que dói […] Sarah! Querida! Não faz isso comigo, querida. Não faz isso comigo. Vamos. Não, não, não, não, não… por favor. Meu Deus!”
Outro Joel
Com o salto temporal de 20 anos na história, o jovem carpinteiro fica para trás e conhecemos outro Joel: um contrabandista de meia-idade que, para a execução de trabalhos ilegais, se desloca entre as ruínas de uma sociedade que jamais se reconstruiu. Apesar da idade, Joel é um exímio sobrevivente: calculista, forte, violento e emocionalmente impenetrável.
Nesse mundo, Joel vive quase como um lobo solitário: ele não se alia ou submete aos grupos que, naquele contexto, se autodenominavam ‘Ordem’ — como a FEDRA (Agência Federal de Reposta a Desastres), ou ‘Luz’ — como os Vagalumes (milícia antagônica às leis marciais).
Há, nesse sentido, uma única exceção: Tess, uma contrabandista de aproximadamente 30 anos com quem Joel dividia negócios. Existia, ali, uma relação de confiança (talvez um romance?), mas nada muito além disso. Com a morte precoce da personagem, fica claro que o vínculo construído entre eles era pouco profundo. Joel parece sentir a perda, mas não entra em um processo de luto — ele não chora, nem abandona a tarefa que estava envolvido. O protagonista que nos é apresentado, naquele momento, é alguém fechado ao afeto e, em especial, ao luto. Afinal, 20 anos antes, esse sentimento havia lhe destruído.
Joel e Ellie
Conhecemos outra face de Joel quando a nova protagonista da história cruza seu caminho: Ellie, uma garota órfã, de 14 anos, imune ao fungo que devastou a humanidade.
Pelas circunstâncias da vida, Joel se torna responsável por transportar Ellie como uma ‘mercadoria’ através do país, até a base médica da milícia dos Vagalumes. O objetivo era produzir uma vacina para o fungo cordyceps, a partir da imunidade desenvolvida no cérebro de garota.
Ao longo dessa jornada, conhecemos Joel com maior profundidade porque Ellie consegue — intencionalmente ou não — quebrar os bloqueios do protagonista e tocar em suas feridas mais profundas, ao mesmo tempo em que desperta nele a esperança de uma vida comum.
Ellie faz perguntas que Joel não quer responder, mas acaba respondendo. Ellie faz Joel falar sobre o mundo antes da pandemia, quebrando a distância temporal. Ellie conta piadas, Joel detesta, mas sempre escuta mais uma. Ellie faz com que Joel se lembre dela nas pequenas coisas: ao encontrar gibis, recordar filmes e músicas antigas ou pensar em sonhos de sua juventude.
A partir das tentativas de aproximação de Ellie, a blindagem emocional de Joel começa a desaparecer, ao mesmo tempo em que o protagonista demonstra medo. O vínculo, àquela altura, já era grande, mas o trauma parecia ainda maior.
Em determinado momento, em uma clara tentativa de se distanciar, Joel pretende ‘terceirizar’ a entrega da garota. Quando Ellie descobre, o confronta em uma cena memorável, cheia de sentimento e profundidade:
E: Eu não sou ela, sabia?
J: O quê?
E: A Maria me contou da Sarah. E eu…
J: Ellie! Olha aqui, esse assunto é muito delicado.
E: Sinto muito pela sua filha, Joel, mas também perdi pessoas.
J: Você não faz ideia do que é perder!
E: Todas as pessoas que eu gostava morreram ou me deixaram. Todo mundo, menos você! E não diga que eu ficaria mais segura com outra pessoa, porque na verdade eu só teria mais medo.
[pausa]
J: Tem razão… Você não é minha filha e com certeza eu não sou seu pai. E nós vamos nos separar.
Joel desiste de se distanciar ao perceber que, naquele momento, a ligação com Ellie já era maior que o trauma relacionado à morte de Sarah. Ela era uma boa companhia, tinha a praticamente a mesma idade de sua filha e se importava com ele. Joel, por sua vez, se preocupava com a garota e, através desse sentimento, conseguia imaginar uma vida diferente.
Infelizmente, naquele mundo caótico onde a violência é regra e momentos de paz uma exceção, provações testam Joel e Ellie — física e psicologicamente — ao extremo. Apesar disso, o sofrimento consolida a relação dos personagens de maneira muito bonita.
Em The Last of Us, somos conduzidos através dos dilemas e processos de cura que Joel e Ellie precisam lidar — nos quais, muitas vezes, enxergamos à nós mesmos.
Em determinado momento, Joel promete ensinar Ellie a tocar violão. Em outro, pede desculpas e fala sobre a perda de Sarah. Há, também, um diálogo no qual propõe abandonar a ideia de levar a garota até os Vagalumes, optando por se unir diretamente à Tommy, na comunidade de Jackson, caso ela preferisse.
Na belíssima cena das girafas, temos um claro marco narrativo: Joel quer mudar de vida: descansar e se sentir parte de algo. A entrega já não importava mais, nem a vacina, nem qualquer recompensa. Para ele, Ellie era sua família e só isso importava.
Ao concluir a jornada e descobrir que Ellie morreria na cirurgia, Joel não vê outra opção senão salvá-la. Em uma cena densa, ele mata todos os Vagalumes que encontra entre as áreas do hospital (soldados, médicos e até a líder do grupo) e foge carregando a garota, ainda desacordada.
Há uma simbologia muito importante nessa cena: Joel não aceitaria, mais uma vez, perder uma filha em seus braços.
Ele enxergou, ali, uma última chance de reescrever sua própria história — em uma escolha egoísta, mas cheia de amor e entrega.
Sim, a escolha de retirar Ellie do hospital é questionável, mas o fato é que a vida de Joel, nos últimos 20 anos, havia sido forjada por decisões questionáveis. O mundo o testou ao extremo e, em diversos momentos, ele cedeu à pressão. O instinto de sobrevivência costumava falar mais alto porque, desde o incidente em Austin, ele não tinha em quem se apoiar ou no que acreditar. Joel era um homem desolado pela perda e não aceitaria passar por isto mais uma vez.
O epílogo
Na cena final de The Last of Us (2013), Joel mente para Ellie alegando que os Vagalumes não precisariam mais dela. Ellie, nitidamente triste, fala sobre a impotência que sente diante da morte de pessoas que a cercavam — sua amiga Riley (DLC Left Behind), Tess, e o menino Sam — iniciando o diálogo mais simples e impactante dessa jornada:
J: Nada disso foi sua culpa.
E: Não, você não entende.
J: Eu tive que lutar muito para sobreviver. E você… haja o que houver, você está sempre lutando por alguma coisa. Eu sei que não é o que você quer ouvir agora, mas é…
E: Promete pra mim. Promete pra mim que tudo que você disse sobre os Vagalumes é verdade.
J: Eu juro.
[pausa]
E: Tá.
Com o breve “tá” de Ellie, chega ao fim a primeira parte de uma história que aguardaríamos anos para conhecer em totalidade.
Um novo Joel?
Aqui, chegamos ao ponto central desse texto: o Joel que nos é apresentado, em The Last of Us Part II, é outro personagem? Existem muitas críticas à forma como o personagem é trabalhado na sequência da narrativa. Teria a Naughty Dog descaracterizado o protagonista? A resposta para a última pergunta, sem qualquer dúvida, é: não. Mas Joel mudou? Sim — como qualquer pessoa, ao longo do tempo.
Em The Last of Us, somos apresentados à três faces de um mesmo Joel, em tempos e contextos distintos.
Primeiro, o jovem Joel: um pai solteiro e cansado da rotina de trabalho que, diante do caos, priorizou a sobrevivência de sua família a qualquer custo — optando, inclusive, por ignorar um pedido de socorro.
Depois, o Joel pós-perda: um homem sem chão, emocionalmente quebrado e desconfiado de todos. A desconfiança, em especial, possui um start concreto: o soldado que matou sua filha, em tese, deveria proteger a população, mas atuou como um verdadeiro assassino. Soma-se a isto o fato de que, naquele mundo, a violência era regra e todos agiam de acordo com suas ambições. Tudo se resumia à opressão, guerra e infecção.
Por fim, conhecemos o Joel pós-Ellie: um homem que, apesar das dores, se permitiu importar verdadeiramente com alguém mais uma vez; disposto a recomeçar e sonhar com uma vida diferente.
O ‘novo Joel’ é um homem mais velho e naturalmente cansado de uma vida sem rumo. Essa nova face se desenvolve aos poucos, de maneira orgânica, conforme ele percebe, em Ellie, a chance de reescrever sua própria história: aquela que foi interrompida com a morte de Sarah, duas décadas antes.
Em The Last of Us Part II, Joel vive uma vida relativamente tranquila na comunidade de Jackson: com Ellie, Tommy, Maria e diversas famílias. Lá, além de energia, existem bares, casas, creches, lojas e playgrounds — como uma espécie de miniatura do mundo antigo. Nesse contexto, Joel alcança o sentimento de pertencimento: ele serve a comunidade com patrulhas e carpintaria, além de ter seu próprio espaço e tempo para desenvolver hobbies, como a música.
Nesse novo mundo, Joel não disfarça que faz questão de estar com Ellie. Há, nesse sentido, momentos belíssimos, como quando toca ‘Future Days’ (Pearl Jam) e a presenteia com um violão. A expressão facial de Joel nessa cena é de fazer qualquer um chorar. Ele está nitidamente tímido — e Ellie, como uma boa adolescente, um tanto distante. De qualquer forma, é notável que o coração do personagem está por inteiro naquela canção: de pai para filha.
Se eu um dia te perdesse, eu me perderia junto
Tudo o que eu encontrei aqui, eu não encontrei sozinho
Se você tenta, às vezes consegue me fazer o homem que sou
Tudo que tiraram de mim, eu já não preciso mais
Porque eu acredito, e eu acredito porque vejo
Nossos dias futuros, dias com você e eu.
Há, também, outro momento muito marcante: no aniversário de Ellie, Joel a leva para um museu abandonado que possui seções de paleontologia e astronomia (duas paixões da garota). E esse é um dos flashbacks mais bonitos do jogo, com direito a Joel sendo jogado no rio, usando um chapéu engraçado e planejando todos os detalhes de uma experiência espacial — tudo por Ellie.
Do início ao fim dessa jornada — através de cenas cronológicas e flashbacks — fica claro que Joel abraçou uma nova motivação para a vida: ser, de fato, um pai para Ellie (meio sem jeito, com uns toques de tiozão, mas ainda assim, pai).
Apesar disso, Joel não esperava por uma coisa: ele seria cobrado pelas escolhas feitas no passado.
A mentira contada sobre os Vagalumes, no final do primeiro game, vem à tona. Ao pressioná-lo e descobrir o que realmente aconteceu, Ellie se entristece por saber que perdeu a chance de fazer algo relevante pelo mundo. Algo como: “por que eu deveria viver em detrimento dos que morrem?”.
As consequências pelo assassinato em massa, no hospital dos Vagalumes, também vieram à tona: Abby, filha de uma das muitas vidas atravessadas pelo personagem, buscaria vingança pela morte de seu pai, Jerry (o cirurgião que faria a operação no cérebro de Ellie). Contudo, Joel não desconfia dessa possibilidade ao socorrê-la, por acaso, quando cruza seu caminho diante de uma horda de infectados — ao mesmo tempo em que mulher encontra, naquela circunstância, o terreno perfeito para pavimentar uma emboscada. Horas depois, a vingança de Abby é concretizada: Joel é morto brutalmente, na frente de Ellie e Tommy.
Em um primeiro momento, o jogador pode pensar que a morte de Joel foi banal ou precoce na narrativa, especialmente porque ele é um personagem muito amado. Contudo, ao trilharmos as jornadas de vingança propostas em The Last of Us Part II — tanto de Ellie, como de Abby — fica claro a mensagem pragmática que o jogo pretende transmitir: a violência gera consequências irremediáveis e produz ciclos de vingança que destroem a nós mesmos e a quem mais amamos. Sobre esse assunto, escrevi o texto ‘The Last of Us Part II: vingança além do discurso’.
Conclusão
Joel fará muito falta. Escrever esse texto me fez chorar. Chorei muito com a cena de sua morte. Chorei, ainda mais, em cada flashback que ele retornava, pois sentia um vazio no peito. Também chorei ao perceber que, de fato, o desfecho do jogo é triste. A narrativa começa em gotas e termina em um mar de lágrimas. Apesar disso, acredito que há uma beleza única — e de difícil explicação — proporcionada pela obra.
The Last of Us, definitivamente, não é o tipo de franquia que ambiciona agradar a qualquer custo. Se assim fosse, a Naughty Dog teria cartas fáceis nas mangas: bastaria manter Joel e Ellie vivos para sempre, envoltos em algum drama passageiro, matando hordas de infectados por aí. Sim, nós amamos esses personagens, mas estamos falando de um mundo em ruínas, no qual a violência é regra e a vida possui pouco valor. Portanto, tal ‘cartada’ não faria sentido.
Diferentes temas são abordados em The Last of Us Part II mas, provavelmente, o conceito de ‘consequência’ é o principal deles. O que ocorre com Joel é, tão somente, uma consequência de seus atos. Nesse sentido, alguns fãs tem feito duras críticas ao jogo, alegando que o personagem poderia ter se livrado facilmente de tal consequência caso fosse ‘o mesmo cara desconfiado de sempre’, ou caso tivesse reagido à armadilha — e que, portanto, estes seriam graves furos de roteiro. No entanto, essas críticas deixam de lado duas questões importantes:
1- no contexto de Jackson, Joel não precisava mais manter a guarda elevada o tempo todo: ele vivia em comunidade, portanto era alguém ressocializado. Ele tinha seu próprio espaço, podia descansar e lidava com uma rotina de trabalho relativamente estável;
2- Joel era um homem velho e naturalmente cansado. Seria possível lidar com 6 inimigos armados — em um ambiente desconhecido — durante aquela emboscada?
Amamos Joel, mas não podemos fugir da realidade: ele não era um militar altamente treinado, mas alguém que, em tempos passados, enfrentava qualquer coisa porque não enxergava valor na vida. Como ele mesmo diz para Ellie, em uma de suas frases finais no prólogo do primeiro game:
“Eu tive que lutar muito para sobreviver.”
Lutas resultam em vitórias e derrotas. Joel passou pela duas experiências.
Enquanto fã, me apego ao seguinte pensamento: antes de morrer, Joel pôde ser curado e encontrar sentido para prosseguir. Em Jackson, ele foi feliz.
Houve esperança para um contrabandista destruído emocionalmente. Há, também, para cada um de nós.
Descanse em paz, Joel.
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