Como a Naughty Dog abraçou a diversidade em The Last of Us Part II

Durante o evento GamesBeat Summit 2021 do site VentureBeat, Halley Gross, co-roteirista de The Last of US Part II, explicou como a equipe da Naughty Dog incluiu aspectos contemporâneos de diversidade no jogo. Abaixo destacamos alguns dos principais pontos abordados na entrevista.

A receptividade de The Last of Us Part II

Questionada sobre a receoção do jogo pela comunidade, Gross respondeu: “Em grande parte o que ouvimos foi maravilhoso. Estávamos nervosos para sair em um momento com COVID e tudo o que está acontecendo no mundo. Mas parece que realmente ajudou as pessoas a processar o trauma. Mas, mais do que isso, acho que as pessoas realmente responderam à representação em que nos concentramos, acho que muitas pessoas se sentiram realmente representadas e ficaram emocionadas ao ver alguma versão de si mesmas em um jogo que estão jogando, então, sim, tem sido realmente maravilhoso.”

Durante a entrevista, o apresentador Dean Takahashi comentou que a Parte 2 pode contribuir com diferentes lições para diversos desenvolvedores de jogos. O apresentador salientou a importância de se incluir personagens (principais ou secundários) que englobem um leque cultural diverso, sendo que todos estes são seres humanos, sejam eles asiáticos, americanos, transexuais, lésbicas e bissexuais. Neste sentido, Gross enfatizou: “Realmente tem sido uma prioridade do estúdio. No departamento de escrita, nos preocupamos em representar o mundo que vemos ao nosso redor, tendo certeza de que cada personagem fosse único, individual e humano. Não há dois personagens que pareçam representar necessariamente a mesma experiência ou ponto de vista. Mas, além disso, nosso estúdio é muito diversificado. E era uma prioridade para tantos departamentos diferentes, especialmente nosso conceito de personagem, que nossos artistas constantemente vinham até nós. Eles diriam: Nós temos esse personagem, de quem precisamos neste papel no jogo. E se fizéssemos o personagem ficar assim? E se focássemos dessa forma, tentando realmente empurrar cada personagem para sentir que você está vendo a diversidade da América em que vivemos?”

Implementação de personagens

A implementação de diversos personagens e como eles se encaixariam no enredo, Dean perguntou como Gross lidou com essa questão. “Temos sorte de saber, nossa história é uma história moderna que se passa em uma América pós-pandêmica. Mas também era uma prioridade real para nós. Foi uma prioridade real usar a plataforma que temos para tentar normalizar muitas dessas representações que ainda, para seu ponto, parecem estar à margem”.

Tribalismo

Uma das principais características do universo de The Last of Us são as facções e ou grupos de sobrevivências. Este contexto se encaixa no termo Tribalismo, o qual defende que os seres humanos deveriam viver em pequenas sociedades ao invés de sociedades massivas. Neste contexto, Gross argumentou: “Nosso foco estava lá. E tivemos a sorte de ter esses personagens estabelecidos. Tivemos Ellie, que era canonicamente lésbica, e tivemos Joel. Mas, além disso, acho que o que estávamos realmente tentando fazer é pensar sobre quem estaria lá, honestamente, quatro ou cinco anos depois, e então construir isso. Em termos de diversidade, não sentamos e dissemos, acho que quando você está pensando sobre um personagem, raça ou identidade de gênero ou orientação sexual são apenas facetas de quem é um personagem.”

A roteirista destacou que os escritores não queriam que os personagens fossem definidos por apenas uma coisa, como raça, gênero, orientação sexual ou credo. “Há uma oportunidade de o personagem fazer tanto pela história”, então eu acho que realmente começamos com, ei, o que esse personagem precisa fazer em termos de funcionalidade na história?. Que ponto de vista eles precisam representar em termos de apoio ao tribalismo sendo contra o tribalismo movendo um de nossos protagonistas em certas direções? E então, uma vez que descobrimos isso, dissemos quem está disponível para o elenco. Não vemos muita representação asiática. Não seria incrível se priorizássemos, você sabe, fazer de Jessie um personagem asiático-americano?”

Desenvolvimento dos personagens

“Uma das razões pelas quais entrei no projeto foi que eu estava animada com os personagens Ellie e Joel que Neil Druckmann desenvolveu no primeiro jogo. Você tem essa mulher, que era essa menina, que cresceu em um mundo de traumas, de desgosto, de abandono, e que ela se tornaria quando jovem. E isso foi realmente emocionante. ” Diz Gross, sobre a criação de personagens e como eles poderiam interagir com o público. “Também é fabuloso que estejamos vendo protagonistas LGBT em nossa narrativa, mas, em minha mente, sua orientação sexual é, novamente, apenas uma faceta desta mulher incrivelmente complexa que está negociando o impacto do trauma em sua alma. Ou seja, para mim esse é o tipo de foco que Ellie tem neste jogo.”

Algo marcante em The Last of Us é o envolvimento afetivo que o público tem com seus personagens. Em contrapartida, há também um revés em relação a morte de alguns destes, sendo estas mortes sem qualquer cerimônia ou atos de heroísmo, tal como na vida real, dura e crua. Para Gross, essa característica remete-se aos desenvolvedores que queriam mostrar ao público o quão perigoso é o mundo de The Last of Us. Neste sentido, a roteirista exemplificou, apontando que quando NPCs (personagens não jogáveis) morrem, outros personagens gritam, e isso reforça a noção de que a vítima era um ser humano real, e faz você se perguntar se o personagem que está matando é realmente o herói. “As pessoas entram em um jogo com noções preconcebidas a respeito do valor dos NPCs”, disse ela. “Vimos isso como uma oportunidade, porque isso não é um filme ou um programa de televisão, porque isso é um videogame, para brincar com essa expectativa. Ellie acredita que as pessoas são descartáveis, e (conforme você a interpreta), você tem que avançar ou mover-se furtivamente para chegar ao seu objetivo. Mas queríamos que isso começasse a se infiltrar. Toda essa violência tem um custo”.

A coragem em The Last of US Part II

A roteirista confessou que queria desafiar os desenvolvedores de jogos a não apenas seguir o status quo por medo de irritar algumas pessoas ou deixar de atrair o público mais amplo. “Se você está contando uma boa história, se está criando um personagem complexo, haverá alguma faceta desse personagem com a qual as pessoas podem se identificar. Não precisa ser necessariamente a aparência ou quem amam. Mas são os momentos humanos que conectam todos nós. Então eu, espero que todos nós, como contadores de histórias, estejamos tentando encontrar maneiras de fazer nossos personagens se sentirem humanos, mesmo que eles não sejam humanos, fazendo-os sentir empatia. “Temos uma plataforma enorme, temos uma grande oportunidade de alcançar um grande público. Vamos ajudar nosso público a crescer, vamos desafiá-los a se relacionar com pessoas com as quais não se relacionariam de outra forma. Todos nós nos relacionamos com um pequeno encanador (Mário – Nintendo). Por décadas, todos nós nos relacionamos com um ouriço azul (Sonic – Sega), há décadas. Vamos permitir que nossos personagens mais antropomórficos sejam personagens mais fundamentados, para ter a diversidade que alguns de nossos desenhos animados têm tido por anos, vamos fazer isso. Vamos ser corajosos. “

A força feminina

Introduzir mulheres fortes e relevantes no contexto de entretenimento em geral foi natural. “Eu não tinha visto isso antes”, disse ela. “Aqui estão essas mulheres nesses papéis traumáticos. E de repente me senti um pouco mais representada. Para a próxima geração, vamos aproveitar a oportunidade para inspirar as crianças abaixo de nós a contar suas histórias e se relacionar com todos nós para que possamos sentir que somos representados.”

Ódio, aceitação e evolução

Ao comentar sobre críticas e insultos de alguns usuários: “Você deveria ver meus DMs. (mensagens diretas)” disse a escritora. “Foi um inferno por um tempo, apenas coisas que eu não poderia dizer para minha mãe em voz alta. A Naughty Dog tem sorte porque eles têm uma história de que podem suportar grandes oscilações e as pessoas confiam que eles vão entregar algo empolgante e interessante. Acho que não podemos ter medo. Talvez isso seja controverso. Eu não me importo em apaziguar aquele grupo. Eu não quero fazer todo mundo feliz. Nunca vamos fazer todo mundo feliz. Quero usar minhas oportunidades para alcançar as crianças que não se sentem vistas. Não podemos simplesmente descansar sobre os louros. Não vamos crescer; não vamos mudar. O crescimento vem da mudança. A maioria das pessoas não quer mudar, a menos que sejam forçadas a isso, a menos que sejam confrontadas pela mudança porque gostam de se sentir confortáveis. Temos que deixar as pessoas um pouco desconfortáveis ​​para ajudar a crescer como sociedade”.

Sobre as pessoas que não querem mudar sua forma de pensar comentou: “Eles não vão mudar. Então, por que estamos tentando deixá-los confortáveis? Não vamos mudar suas mentes. Não estamos fazendo o jogo para eles. Estamos fazendo o jogo para todos. E algumas pessoas não vão gostar. E eu não me importo de irritar esse grupo”.

O futuro da diversidade no mundo dos Games para Gross requer profundidade. “Acho que os jogos, mais do que qualquer outro meio, têm uma oportunidade porque, no seu ponto, você está realmente entrando no lugar desse personagem. O que eu adoraria ver é um investimento em personagens dimensionais em talvez não contar tais histórias em preto e branco, em ter protagonistas defeituosos e antagonistas resgatáveis, e olhar para todos os nossos personagens em videogames, de forma holística (que buscam um entendimento integral, completo). Os jogos não tratam apenas da mecânica. Os jogos tratam de toda a experiência. A mecânica ajuda a elucidar o caráter, o caráter ajuda a definir a mecânica. Os personagens devem ser vistos como interligados. E então eu acho que sempre que temos a oportunidade de usar animações, mecânicas e personagens de uma narrativa, devemos apresentar para as pessoas tudo o que elas estão acostumadas a ver, de modo que quando elas encontrarem isso em sua vida diária, elas sejam mais abertas a novas experiências. Acho que a narrativa deve ser um passeio delicioso, mas pode ser muito mais. E acho que devemos fazer tudo o que pudermos para torná-la ainda mais”.